abc+

SERRA GAÚCHA

Polícia e MP investigam vereador de Caxias do Sul por fala preconceituosa sobre trabalhadores da Bahia

Sandro Fantinel se referiu aos baianos como "povo que vive na praia tocando o tambor" enquanto falava sobre caso de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves

ico ABCMais.com azul
Publicado em: 01/03/2023 às 15h:12
Publicidade

A Polícia Civil instaurou um inquérito para apurar as falas do vereador Sandro Fantinel (Patriota), de Caxias do Sul, sobre os mais de 200 trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra gaúcha, na última semana. 

Durante sessão da Câmara de Vereadores na terça-feira (28), o político aconselhou agricultores, produtores e empresários do setor agrícola a não contratarem pessoas da Bahia, Estado de onde eram muitos dos trabalhadores resgatados. “Que isso sirva de lição. Deixem aquele povo, que é acostumado com carnaval e festa, para vocês não se incomodarem novamente”, disparou.

Vereador Sandro Fantinel



Vereador Sandro Fantinel

Foto: Bianca Prezzi/Câmara Caxias

De acordo com o delegado Rafael Keller, que responde pela 1ª Delegacia de Polícia de Caxias do Sul, foram solicitadas à Câmara de Vereadores da cidade as imagens da sessão com a declaração do parlamentar. Keller ressalta que não houve denúncia formalizada à Polícia sobre o caso e que a investigação foi iniciada após a repercussão do episódio na imprensa. O inquérito deve ser concluído em até 30 dias.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS) comunicou na tarde desta quarta-feira (1º) que também investiga o caso. O procurador-geral de Justiça Marcelo Lemos Dornelles relatou que o órgão irá apurar a fala do vereador nas esferas criminal e de direitos humanos.

“Considerando a ampla repercussão do referido discurso, ocorrido em espaço público, por agente público, que de plano pode ser classificado como preconceituoso e difamatório, fizemos o encaminhamento à Promotoria de Justiça Criminal de Caxias do Sul, para avaliação sob a ótica do crime, e para a Promotoria de Justiça com atribuição em matéria de Direitos Humanos, a fim de que se instaure inquérito civil para avaliar a possibilidade de dano moral coletivo”, explica Dornelles.

Declarações

“Gente, só vou dar um conselho: agricultores, produtores, empresas agrícolas que estão me acompanhando não contratem mais aquela gente lá de cima [em referência à Bahia, no Nordeste], disse o vereador durante a sessão legislativa. “Com os ‘baiano’, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando o tambor, era normal que tivesse esse tipo de problema.”

Ainda durante sua fala, Fantinel defendeu e orientou que contratassem argentinos. “Porque todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantém a casa limpa, e no dia de embora ainda agradecem o patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam.”

O vereador também questionou a atuação de fiscalização da pasta e as obrigações trabalhistas que competem aos empregadores. “E agora o patrão vai ter que pagar o funcionário para fazer a limpeza para os ‘bonito’, também? É isso que tem que acontecer? ‘Temo’ que botar ele em hotel 5 estrelas para não ter problema com o Ministério do Trabalho? É isso que temos que fazer?”, disse. “Então vamos abrir o olho, povo que me assiste, quando falam em ‘análogo à escravidão’, porque eu conheço bem como funciona essa situação”. “A intenção é trabalhar 10, 15, 20 dias e receber [o equivalente à] 60, mais os direitos”, concluiu Sandro Fantinel.

Na mesma sessão, o vereador voltou aos microfones do plenário para explicar as falas. “Minha colocação da palavra ‘baianos’ não significa que eu tenha alguma coisa contra os baianos. Eu citei a Bahia porque o processo em andamento em Bento Gonçalves, pelo qual me trouxe aqui fazer a minha fala, foi um processo relacionado a funcionários vindos da Bahia. Em que parte diz que eu sou contra aquele povo? Não ponham palavras na minha boca.”

Confira a fala completa do vereador durante a sessão:

Repercussão

Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, utilizou o seu perfil no Twitter para condenar o discurso do parlamentar, que caracterizou como “xenófobo e nojento”. Leite enfatizou que a fala de Fantinel “não representa o povo do Rio Grande do Sul”. “Não admitiremos esse ódio, intolerância e desrespeito na política e na sociedade”, escreveu. O governador ressaltou ainda que irá conversar com autoridades da Bahia para que “acompanhem as atitudes que já estamos empreendendo e para nos aliarmos em outras ações conjuntas de nossos estados para banir o preconceito”.

As defensorias públicas do Rio Grande do Sul e da Bahia divulgaram uma nota de repúdio conjunta. No texto, pontuaram e criticaram o discurso de Fantinel, destacando que “o referido vereador valeu-se do púlpito da Câmara da cidade gaúcha para injuriar e difamar justamente os cidadãos a quem deveria bem representar, os quais, em seu conjunto, constituem o povo brasileiro, que é um só, independente de sua origem ou cor”.

“O referido cidadão portou-se como se fosse maior que a ordem jurídica e que o próprio povo que, ao fim e ao cabo, legitimam o mandato que precariamente detém, mas que não lhe pertence; como se fosse maior que a própria Casa Legislativa que envergonha aos olhos do mundo, submetendo-a ao risco de ver-se reduzida ao tamanho de seu ofensor caso não responda proporcionalmente ao ultraje que pelas palavras deste lhe é imposto”, escreveram.

Confira a nota das defensorias públicas na íntegra:

“Contra a normalização do autoritarismo por meio de discursos de ódio, cumprindo a missão constitucional de zelar pelos fundamentos de nossa República Federativa, as Defensorias do Povo do Rio Grande do Sul e da Bahia unem-se para publicizar a presente nota de repúdio face às declarações do vereador Sandro Fantinel, da cidade de Caxias do Sul.

Traindo o mandato que exerce em nome do povo em sua pluralidade, nesta terça, 28 de fevereiro, o referido vereador valeu-se do púlpito da Câmara da cidade gaúcha para injuriar e difamar justamente os cidadãos a quem deveria bem representar, os quais, em seu conjunto, constituem o povo brasileiro, que é um só, independente de sua origem ou cor. Mais: traiu a Constituição à qual está submetido ao vilipendiar os fundamentos da República, que incluem a promoção do bem de todos; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a redução das desigualdades sociais e regionais.

O referido cidadão portou-se como se fosse maior que a ordem jurídica e que o próprio povo que, ao fim e ao cabo, legitimam o mandato que precariamente detém, mas que não lhe pertence; como se fosse maior que a própria Casa Legislativa que envergonha aos olhos do mundo, submetendo-a ao risco de ver-se reduzida ao tamanho de seu ofensor caso não responda proporcionalmente ao ultraje que pelas palavras deste lhe é imposto.

Confiante de que a liberdade é direito absoluto ao ponto de compreender o abuso e a ilegalidade que esmagam o direito de seus iguais em brasilidade, o vereador também parece julgar-se maior que o tempo e a história, ao tentar condenar o futuro de nosso país a um passado de privilégios e preconceitos que já não encontram lugar entre nós. Ao passado o que é do passado porque o futuro pede passagem e a pavimentação de seus caminhos exige a efetiva reparação dos danos que lhe impõem aqueles que buscam impor sua intolerância à liberdade e à igualdade alheias.

Nesse sentido, em cumprimento à sua missão constitucional e a favor de um futuro de dignidade e justiça para todos, como exigem os ideais civilizatórios, por esta nota as Defensorias da BA e do RS publicizam seu repúdio ao discurso do vereador Sandro Fantinel.”

Câmara de Caxias do Sul se manifesta

A Câmara Municipal de Caxias do Sul publicou uma nota oficial sobre o episódio nesta quarta-feira. No texto, o órgão afirma que a “Mesa Diretora não compactua com nenhuma manifestação de preconceito, discriminação, racismo ou xenofobia”.

Ressaltando que o posicionamento do vereador Fantinel foi individual, a nota pontua que a fala do político “não traduz o pensamento e os valores da instituição e nem da totalidade dos vereadores”. Por fim, o legislativo caxiense pede desculpas ao povo baiano.

Leia na íntegra:

“A Câmara Municipal de Caxias do Sul é a Casa da Representatividade e do Respeito. Por isso, a Mesa Diretora não compactua com nenhuma manifestação de preconceito, discriminação, racismo ou xenofobia.

Em decorrência do pronunciamento do vereador Sandro Fantinel/PATRIOTA em relação a trabalhadores baianos, na sessão ordinária da última terça-feira (28/02), ressaltamos que foi um posicionamento individual do parlamentar. Não traduz o pensamento e os valores da instituição e nem da totalidade dos vereadores.

Também pedimos desculpas ao povo baiano e a todos os migrantes que se sentiram atacados, destacando que são todos muito bem-vindos em nossa Caxias do Sul.”

Vereador disse ter sido 'mal interpretado'

Ao Estadão, o Sandro Fantinel, disse que quis dizer que há casos parecidos com o de Bento Gonçalves e que, nas suas palavras, “são armações”. “Eu já fui visitar e vi. Pessoas que criam esse cenário para depois denunciar o proprietário e ganhar indenizações. Não estou dizendo que são todos. Estou dizendo que existe esse tipo de problema”, disse o vereador.

“Eu usei a questão que aconteceu com os baianos, em Bento Gonçalves, para explicar essa situação. Se fossem cariocas, mineiros ou de Santa Catarina, eu ia colocar o nome daquele Estado”, continuou.

O vereador disse também que errou ao referir ao povo baiano como pessoas que “gostam de ir à praia tocar tambor”, e que pediu desculpas em plenário.

Ele ainda explicou também que a comparação com os argentinos foi feita porque, a pedido de um produtor, ele presenciou a situação em que funcionários contratados para uma lavoura em Caxias, “que não eram do Nordeste, mas da fronteira do Rio Grande do Sul”, não limparam os alojamentos antes de ir embora. “Esse agricultor me disse que em um outro ano, ele contratou argentinos e que deixaram o espaço limpo”, afirmou. “Eu não estava me referindo aos baianos, qualquer pessoa com o mínimo de consciência entende isso”, disse.

Ainda para se defender, o vereador afirmou à reportagem que foi mal interpretado, que está sendo ameaçado por conta de suas falas, que a maneira como as declarações foram divulgadas faz parte de um trabalho de oposição da esquerda, e alegou ser contrário ao trabalho análogo à escravidão. “O que aconteceu em Bento Gonçalves foi, sim, análogo à escravidão. Eu não disse que não. Eu não sou à favor desse tipo de coisa”.

Quem é o vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel

Sandro Fantinel é político, empresário de Caxias do Sul, e apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), com quem compartilha a simpatia por pautas conservadoras, como a militarização na educação e Escola Sem Partido.

Eleito para a câmara municipal de Caxias com 1.756 votos, o vereador está em seu primeiro mandato, embora já seja ativo na política há anos. Em 2017, junto com um grupo de empresários, ele criou a Comissão Pró-Bolsonaro 2018. Fantinel deixou de se candidatar a deputado federal nas eleições do ano seguinte para trabalhar pela campanha de Bolsonaro à presidência da República.

O parlamentar afirma em sua biografia disponível no site da câmara de Caxias que seus principais objetivos no mandato, previsto para encerrar em 2024, estão a criação de escolas cívico-militares, a criação de um novo banco de alimentos em Caxias, trabalhar pelo desenvolvimento do agronegócio, e “batalhar em prol do projeto Escola Sem Partido”.

*Com informações de Caio Possati, de Estadão Conteúdo

Publicidade

Matérias Relacionadas

Publicidade
Publicidade